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sábado, 12 de fevereiro de 2011

Oração do doente - Graça Alves

"Senhor, sinto-Te aqui, à beira da minha cama, segurando as minhas mãos, limpando as minhas lágrimas, aconchegando-me os lençóis, quando a solidão quer deitar-se comigo. Tenho sentido, também, aqui comigo, a Tua Mãe que me tem velado o sono e aquecido o peito. Sei que lhe pediste que ficasse à minha cabeceira, para me ajudar a lutar contra o medo.
Sei que conheces esta angústia que, às vezes, entra no meu quarto sem bater à porta. Sei que entendes esta dificuldade que tenho em depender de outras mãos, em precisar de outros braços – abraços, de olhar para a parede branca e não ver nela senão uma parede branca. Por isso, meu Amigo, fica comigo esta noite. Porque a noite é feita de um tempo que não passa e que dói de imobilidade. Manda a manhã acordar mais cedo e trazer um bocadinho da vida que já nasceu lá fora. Pede ao sol que se levante e me aqueça o quarto, só um bocadinho.
Olha para a pequenez do meu corpo encolhido pela doença. Olha para a minha fragilidade. Toma a minha dor nas Tuas mãos. Ajuda-me a levar a cruz que se derramou na minha vida e a saber encarar a escuridão com o sorriso que as estrelas me ensinaram a desenhar, quando eu era pequena.
Fica comigo. Faz-me entender o significado deste sofrimento que, hoje, me dói no corpo e na alma. Segura a minha vida e não permitas que me perca de mim, da minha esperança. Não me deixes cair na tentação de obedecer ao abismo que me puxa e me traz aos olhos este mar que me salga as palavras.
Cuida dos que cuidam de mim. Abençoa as suas vidas. Agradece-lhes, por mim, cada momento que me oferecem, cada sorriso que me dá confiança, cada palavra, cada gesto, cada silêncio. Dá-me coragem para vencer este cansaço e força para continuar a sorrir.
Ámen 1"
 
Jornal da Madeira,   Link

sábado, 2 de outubro de 2010

GRAÇA ALVES: Anotações do tempo que passa...

"Estão ali, falando em silêncio dos recados que o tempo deixou suspensos nas nuvens, chorando os que partiram antes deles, mastigando as palavras na boca, numa toada antiga, que já foi canção de embalar, que já foi cantiga de amor, que já foi riso, que já foi grito, que já foi. Ponto.
Estão ali com a vida por contar. À espera que alguém tenha tempo para parar e ouvir as histórias que os anos gravaram nos vincos da pele. Sentados na beira da morte, aproveitam os restos do sol, o sopro de mais este vento, o sorriso de algum miúdo que não tenha medo do silêncio das mãos que a idade lhes foi derramando no colo.
Estão ali e são exactamente o que nós vamos ser, amanhã. Se Deus quiser, na lentidão branda de quem não vai pedir desculpas, o nosso corpo vai ficando mais perto do chão, a lua vai derramando lágrimas de prata sobre as nossas cabeças, as levadas da nossa cara vão bebendo o brilho da juventude. Como eles, não vamos saber onde guardámos o espelho onde estava a beleza fresca da nossa gargalhada.
Estão ali. São pedaços de Outono que deixam pistas para o nosso Inverno. Estão sós. Desesperadamente sós. Às vezes, dentro da nossa casa. Ao nosso lado. Sentados à nossa mesa. Como se ocupassem um lugar que já não lhes pertencesse.
Estão ali. À espera que a nossa mão aqueça a sua, que o nosso sorriso ilumine a sua cegueira, que a nossa voz lhes conte da vida que corre lá fora, do sol que acorda as cidades, do mundo que, todas as manhãs, traz uma novidade.
Estão ali. E não morreram ainda. Os moribundos somos nós porque os deixamos adoecer de passado. Já nos esquecemos das vezes em que eles cantaram para adormecermos? Já não nos lembramos dos beijos que beberam as nossas febres? Já não precisamos dos truques deles para enganar os pesadelos? Já perdemos o sabor das lágrimas que nos mataram a sede?
Estão ali. Dependem de nós. Amanhã, certamente, a nossa solidão terá exactamente o tamanho da deles. "

Jornal da Madeira,   Link

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

"Ontem e hoje" - Graça Alves

"Ontem, a ilha era verde; hoje, os esqueletos pretos das árvores rasgam o céu, cinzento de tristeza.
Ontem, os caminhos subiam a montanha fazendo das copas, túneis de frescura; hoje, o cheiro a lume inunda os pulmões de quem está lá, de quem está longe, de quem acompanha as imagens pela televisão.
Ontem, Agosto era mês dos piqueniques na serra, do cheiro a eucaliptos e a gargalhadas; hoje, Agosto é o mês da terra em fogo, da bola vermelha a incendiar o céu, da noite a descer cedo, sob a manta das cinzas.
Ontem, falava-se da beleza das nossas escarpas, do azul transparente do nosso mar, da gentileza das gentes, da paisagem impressionista dos jardins; hoje, fala-se da luta contra o fogo, da destruição da floresta, da descaracterização da terra.
Ontem, foi a água; hoje é o fogo. O ar está pesado de folhas de eucaliptos moribundas, choradas das árvores. A terra está dramaticamente negra e queimada.
Ontem, as mãos ressuscitavam as árvores cansadas do tempo; hoje, as mesmas mãos e outras mãos regam a desgraça do que é de todos e que já não é de ninguém, porque o fogo engoliu.
Ontem, as mãos. Hoje, as mãos. Queimadas. Fortes. Cansadas. Desanimadas. Corajosas. Dadas. Postas.
Ontem, a luz; hoje, o lume.
Ontem, a luta; hoje, o medo.
Ontem, a vida; hoje, a morte.
Amanhã, talvez amanhã, talvez já amanhã, se recomece."

sexta-feira, 30 de julho de 2010

"Quando eles chegam" - Graça Alves


"Levam a vida inteira a pensar em Agosto. Já pensavam neste mês de regressos na hora de partirem à procura de lugares onde a terra fosse mais suave, onde o dinheiro fosse mais fácil, onde a vida se escrevesse com menos dureza, com mais futuro. O sonho era ir, trabalhar, para depois voltar, com um anel no dedo e com dinheiro para erguer uma casinha no quintal dos pais.
Os filhos haviam de falar outras línguas, ter outra instrução, ser doutores como os outros, como os que nunca precisaram de sair da ilha para sobreviver às montanhas. E seriam felizes para sempre.
Quando partiram, levaram o mês de Agosto impresso no bilhete:
- Eu volto, pai.
Levaram anos inteiros a trabalhar para Agosto. O ano não tinha importância. Haviam de regressar e voltar a sentir o cheiro da terra que a água rasgou durante o Inverno. Haviam de voltar a comer a sopa de couve na mesa da cozinha, porque a sopa de couve no longe dos países não tem o mesmo sabor, mesmo que os preparos sejam os mesmos e a toalha da mesa igual à que a mãe punha na mesa, há tantos anos, há uma eternidade atrás. Haviam de voltar a subir os barrancos para ver os poios, apenas para matar saudades. Haviam de voltar para rever os lugares, para ver a família, para beber com os amigos. Haviam de voltar. Chegam agora. Mesmo os emigrantes que não vêm, chegam agora. Porque Agosto é o mês de chegar. Os que vêm trazem valises de abraços e de saudades, lágrimas que foram acumulando para as derramar agora, no momento em que os seus olhares se cruzam com a terra.
Os que não vêm, preparam-se para vir noutro Agosto. Talvez para o ano, a figueira ainda se encha de figos, as uvas ainda enfeitem as latadas, os pais ainda estejam sentados no terreiro, à espera que o mundo lhes devolva quem levou.
Chegam agora. Ou não. Em Agosto, a terra espera os filhos que foram à procura de outros mares. Alguns voltam. Outros não.
Quem parte, inscreve Agosto no peito. Quem fica, também."


Link - Jornal da Madeira