"Olha, parece que o Estado-providência morreu! Aliás, é melhor dizer que morreu outra vez, porque já perdemos a conta à quantidade de vezes que nos anunciaram o seu falecimento. Mas ele continua a ser o morto mais saudável que conhecemos.
Nesta monumental tragicomédia em que se tornou a nossa política orçamental (comédia política, tragédia económica) volta a dizer--se que o Estado social, como o conhecemos, vai desaparecer. A razão é a do costume: não há dinheiro. Estas declarações geraram as habituais reacções, do furor indignado à penitência compungida. Só não se vê aquilo que realmente melhoraria a situação: um pouco de equilíbrio e racionalidade. E decência. Mais uma vez, os maiores inimigos da segurança social são os que se dizem seus dedicados defensores.
O Estado-providência é composto por três processos diferentes. O primeiro é um mecanismo de poupança, em que se acumulam descontos no trabalho para se obterem pensões na reforma. O segundo garante seguros contra acidentes, como o subsídio de desemprego e outras prestações ligadas a circunstâncias especiais, apoios na doença, bolsas de estudo, etc. O terceiro elemento é de solidariedade, distribuindo aos mais pobres e promovendo a justiça.
Há séculos que todas as sociedades fazem poupanças, contraem seguros e dão esmolas. Mas nas últimas décadas, nos países ocidentais, o Estado interveio assegurando esses serviços a todos os cidadãos. Assim nasceu a segurança social, sistema nacional de saúde, escolaridade pública, etc. Estas políticas tiveram o aplauso unânime dos eleitores e rapidamente o sistema fez inchar a despesa pública e ocupou a maior fatia do Orçamento do Estado.
Tal popularidade garante que o Estado-providência não vai morrer. Quem o tem quer mantê-lo, e quem não o tem gostaria de o ter. O actual debate americano sobre o sistema de saúde é disso prova evidente. Assim seria bom evitar as declarações bombásticas sobre a sua extinção, pelo menos por parte dos defensores, pois apenas servem para aumentar a emotividade e o nervosismo, precisamente o mais prejudicial ao Estado social.
O único problema é que, por muito populares e poderosos que sejam, os sistemas de apoio social não podem fugir às regras da aritmética. Infelizmente, o oportunismo político tem repetidamente manipulado os termos financeiros do processo, fazendo assim perigar a sua sustentabilidade. Os piores inimigos do Estado-providência não são os neoliberais (que, se existirem, ninguém ouve), a crise internacional ou o sistema bancário. É apenas a estupidez. É espantoso como, sendo uma política que todos dizem defender, tantos façam tanto para a destruir.
Os ataques mais mortíferos são também três, todos partindo dos seus mais fanáticos promotores. O primeiro é o peso da máquina, tantas vezes funcionando para cumprir as suas manias, não para servir o público. Depois vêm os vários esquemas ruinosos que, dando votos no imediato, comprometem a prazo todo o sistema. A demência em descer sucessivamente a idade da reforma perante uma subida da esperança de vida, se não era sabotagem propositada, foi negligência criminosa.
Estes dois problemas estão diagnosticados e, mal ou bem, começam a ser abordados. A reforma da segurança social de 2007 foi um passo importante para a sustentabilidade do nosso sistema. Ainda existe muito irrealismo, como mostram as delirantes manifestações em França contra a subida da idade de reforma de 60 para 62 anos. Mas, apesar de tudo, é uma tolice a convicção generalizada de que em breve não haverá dinheiro para pensões.
O pior dos inimigos, que agora domina Portugal, é a suprema hipocrisia de certos políticos, alguns até auto-intitulados "socialistas", que perante um aperto financeiro por razões alheias ao sistema esquecem as juras de solidariedade e cortam nos apoios aos mais necessitados para manterem benesses dos grupos de pressão.
O Estado-providência não está morto. Nem sequer moribundo. Mas era bom que fosse tratado com um pouco mais de serenidade, realismo e, sobretudo, dignidade."
Diário Notícias, Link
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