Uma sugestão de leitura, se ainda não a conhecerem, claro:
“ Sinto Muito”, é o título do livro (4ª ed. 2008, Lisboa:Verso da Kapa), de Nuno Lobo Antunes, neuropediatra.
Na sua capa podemos ler:
“A vida é tempo entre parêntesis.
Alma a nu, sentimento despido de pudor.
O Amor como razão de Ser e de Viver.”
António Damásio, distinto cientista português, neurologista, escreve o Prefácio ao livro, onde a dado momento diz:
“Sinto muito é sobre o sofrimento em geral, ou se quisermos, sobre a dor, seguida de perda, seguida de dor. Entristece o coração, para depois o desanuviar e torná-lo mais leve”. (pg.12)
Em cada página, Nuno Lobo Antunes, como que nos leva à essência da VIDA, ajudando-nos a intui-la e quase de certeza a desejar valorizá-la ainda mais - esse “tempo entre parêntesis”.
A Vida, esse “fio” tão débil e sensível, que nos liga a esta dimensão, a da Maravilhosa Experiência Humana.
Na contracapa pode ler-se:
“ Há no médico o desejo de ser santo, de ser maior. Mas na sua memória transporta, como um fardo, olhares, sons, cheiros e tudo o que o lembra de ser menor e imperfeito.
Este é um livro de confissões. Uma peregrinação interior em que a bailarina torce o pé, o saltador derruba a barra, o arquitecto se senta debaixo da abóboda, e no fim, ela desaba.
O médico e o seu doente são um só, face dupla da mesma moeda.
O médico provoca o criador, não lhe vai na finta, evita o engodo. Mas no cais despede-se, e pede perdão por não ter sido parceiro para tal desafio.”
A Humanidade no seu melhor
“Na história da minha existência estão cravados os anos que passei nos EUA como especialista em neuro-oncologia pediátrica, isto é, médico do cancro que envolvia o Sistema Nervoso das crianças. Após sete anos de intensa vida hospitalar, em que a violência das emoções atingia, todos os dias, dimensões de drama, a vida surge distorcida. Era um dia-a-dia de derrotas, em que mesmo as vitórias não podiam ser inteiramente celebradas, porque a eminência de uma recaída pairava até ao fim da vida. Um dia sugeri que a nossa equipa usasse uma T-shirt com o lema: it is so sad (é tão triste), porque era a frase que mais vezes repetíamos ao longo do dia. Lembro-me que de férias em Portugal, admirava as crianças a brincar na praia porque já me tinha esquecido de que podiam ser felizes e saudáveis. Em cada cara buscava sinais de dor, em cada corpo estigmas de quem sofreu os efeitos da doença ou do seu tratamento. Esta distorção atingia também as crianças e as suas famílias. Ainda me emociono ao lembrar-me de um rapazinho de 3 anos, sem cabelo ou sobrancelhas, que tinha como habilidade, que demonstrava com agrado, saber o nome dos filhotes de todos os animais: o filho da porca – leitão, da égua – poldro, e assim por diante. Um dia, lembrei-me de perguntar como se chamava o filho da mulher. Hesitou um minuto, mas depois abriu para mim um sorriso matreiro de quem tinha intuído a resposta, para afirmar com segurança: outpatient, - doente de consulta externa …
Muitos me perguntavam como era possível conviver diariamente com o desgosto. A resposta é simples: é um privilégio poder conhecer a humanidade no seu melhor, na Coragem, mas sobretudo, no Amor. Os médicos e enfermeiras com quem trabalhava eram santos, porque, como alguma vez ouvi, os santos não se vêem todos da mesma maneira. Lembro-me de Perez, um rapaz de 15 anos que cansado das náuseas e da dor, desistiu do tratamento para viver, o melhor que podia, os meses que lhe restavam. A mãe aceitou sem discussão a opção do seu filho. Despediu-se do emprego para gozar com ele a Vida. Tivemos o último encontro num jardim de NY, em Outubro, num daqueles dias excepcionais em que o sol abre as cortinas do Inverno. Dia apropriado para um encontro que era, simultaneamente, uma separação. Despedimo-nos com um abraço e um sorriso: até breve. Naquele momento, o tempo não teve dimensão. Mas recordo sobretudo a Jennifer, uma rapariga encantadora de 18 anos, amante de golfinhos, que na roleta dos tratamentos decidiu apostar tudo num transplante que falhou. O pai, no dia do enterro, cobriu o caixão de golfinhos azuis, que na pintura sorriam para ela. Na missa, a mim, seu médico e também carrasco, chamaram-me para a sua banda, e dando-me as mãos consolaram-me de um desgosto tão fundo de que só mesmo eles me poderiam içar. Durante anos, tive a sua fotografia no ecrã do meu computador, para que todos os dias me lembrasse porque trabalhava. Poucos meses depois da sua morte, os pais pediram-me ajuda para lançar uma Fundação com o nome da Jennifer para ajudar na luta contra o cancro. O dinheiro dessa fundação foi direito para o Hospital onde morreu. A Humanidade no seu melhor, na Coragem, mas sobretudo, no Amor.”
( Do livro “Sinto Muito”, de Nuno Lobo Antunes, 4ª ed. 2008, Lisboa:Verso da Kapa – pgs. 27 e 28)
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