"A história é breve: um homem e uma mulher casam. Como presente recebem uma casa, «pronta-a-montar». Embalada num 'kit' compacto, esta morada dos tempos modernos pode ser construída em apenas uma semana. Não demora, portanto. Chegados ao pedacinho de terra que se fará seu, o homem e a mulher trabalham. A casa está pronta e, no entanto, torta. Torta, muito torta. O livro de instruções lido e seguido página a página, a ordem das peças uma a uma, os pregos e as marteladas necessários. E, no entanto, errada. Estranha morada. Ou não. Como em quase tudo o que se desacerta, a explicação é quase demasiado clara: o pretendente - preterido pela rapariga da história - tinha trocado as voltas aos números das caixas e desenhado, no lugar do número 1, um 4 (com mais dois traços, apenas), e, no lugar do número 3, um 8 (com mais duas voltas, tão simples). E assim a ordem se desordenara. Consequência: a tão moderna morada tinha a porta de entrada no primeiro andar; as paredes inclinadas; o telhado curto. Como lá entrar, como lá morar?
A história é de um filme (claro...), uma curta-metragem de Buster Keaton e de Edward Cline, de 1920. Sim, de 1920. Mudo e a preto e branco. O papel de marido é interpretado pelo próprio Buster Keaton e o de mulher por Sybil Seely. No original chama-se "One Week" (o tempo que, na história, a casa demora a ser montada). Vale a pena ver (em Internet Archives: Silent Films, http://www.archive.org/details/OneWeek).
Ora, porquê o cinema, agora? Nestes dias incertos em que a memória parece durar apenas o instante de um rodapé informativo (ou nem tanto), parece-me que estamos, como num filme, a acompanhar o debate sobre as contas de um futuro "pré-fabricado" (o orçamento ou a casa), número a número, agora certo, enfim errado (os cortes, os juros, as caixas do 'kit')...
A história (ainda) não acabou: uma tempestade revolta a casa e a chuva e o vento transformam-na num labirinto. Ela roda numa confusa dança. Passada a tormenta, a notícia: a casa tinha sido montada no lote errado. A casa sobre rodas, agora. E logo depois sobre carris, os de um comboio que se aproxima, depressa. Passou ao lado, ufa. Na ida. Na volta, a casa em escombros, sem ordem nem remendo. E agora?
Não o fim, ainda, ou apenas o do filme (talvez). A história tem uma moral (creio, mas não sei bem...): nestes dias de futuro contado (grão a grão), «pronto-a-montar», um homem sem o seu par desacerta a ordem, os números. A casa cresce, torta (e tarda a endireitar). O futuro é um comboio: ida - e volta.
E agora? O que será da casa (do país)?
"À VENDA" (livro de instruções incluído). "The End"."
E agora? O que será da casa (do país)?
"À VENDA" (livro de instruções incluído). "The End"."
Diário Notícias, Link
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